Como a violência foi reduzida na periferia, no relato de vítimas, testemunhas e ex-bandidos.
Nos anos 1980, o sargento David Monteiro acreditava que a violência policial ajudava a reduzir a criminalidade no Capão Redondo, bairro pobre da zona sul de São Paulo; por isso, saía à caça de bandidos. Laércio Soares, dono de uma venda em Diadema, município vizinho, achava que os justiceiros eram a melhor solução para acabar com os assaltos; e, com outros comerciantes, contratava advogados para defender matadores na Justiça. Na década seguinte, o traficante Edson Mendes mandava bala em quem atravessasse seu caminho, certo de que, assim, conquistaria respeito entre clientes e concorrentes no Recanto dos Humildes, na zona norte paulistana, enquanto Alexandre Rodrigues da Silva, integrante de uma gangue do Jardim Ângela, se envolvia em rixas intermináveis com grupos rivais na zona sul - disputas que levaram à morte de pelo menos 150 pessoas ao longo de 7 anos. Jucileide Rodrigues Mauger, a diretora da Escola Municipal Oliveira Viana, onde Alexandre estudou, contou mais de 100 alunos assassinados nas décadas de 1980 e 1990, período em que o número de homicídios batia recordes sucessivos até atingir seu pico histórico: 11.472 mortes violentas em 1999. Até mesmo o motoboy Paulo Enoc, que vivia longe do crime, foi levado a praticar um duplo homicídio para não morrer na zona sul. No entanto, os anos 2000 chegaram, o índice de assassinatos despencou - e todas essas pessoas mudaram a forma de enxergar o mundo e de levar a vida. David, Laércio, Edson, Alexandre, Jucileide e Enoc: são eles que ilustram, com suas histórias, este relato de quase 30 anos de crimes sangrentos e de como foi reduzida, bruscamente, a violência na periferia.
1980 - A era dos justiceirosEm 1979, aos 19 anos, Em Diadema, a Vila Nogueira seguia rumos parecidos. Vitão, antigo morador, dizia que se tornara justiceiro depois de ver a mulher ser abusada. Matou o agressor e não parou mais. Os moradores calculam que ele chegou a matar mais de 100 pessoas. Vitão tinha bons informantes, investigava os roubos e matava quem ele julgava ser bandido. Quando era preso, recebia a ajuda de comerciantes. "A gente não tinha onde se segurar e agarrava o que estava mais à mão", diz Laércio, que organizava a coleta para bancar os advogados de justiceiros e policiais que os ajudavam a "limpar" o bairro. "É como se estivéssemos nos afogando em um rio. O justiceiro era aquele pedaço de pau que a gente acreditava que ia nos salvar. Mas que acabava rachando, quebrando a nossa cabeça e nos levando mais pro fundo." É que o critério dos justiceiros para escolher a próxima vítima se tornou cada vez mais imprevisível. Na trajetória de matanças, arrumavam inimizades por todo lado e passavam a viver para se defender de eventuais ataques de desafetos.
Incontroláveis - ao mesmo tempo que perdiam o apoio da população ou eram assassinados -, no fim da década de 1980 os justiceiros tornaram-se alvo preferencial das forças de segurança do Estado. No começo dos anos 1990, mais de 40 justiceiros estavam presos no Centro de Operações Criminais, na zona norte, jurados de morte por outros detentos. Em meados de 1990, o reinado deles havia acabado: justiceiros desapareceram do noticiário e do cotidiano da periferia. A violência havia se transformado. Novos tipos de assassinos dominariam os anos 1990, com novas justificativas, resultando em milhares de mortes.
1990 - Tráfico e ganguesO que é a violência?
Desde 2001, o PCC vem aumentando sua ascendência sobre o atacado e varejo das drogas nas quebradas. A desordem das rixas de gangues e das disputas do tráfico sucumbiu a um poder mais forte, situação que leva muitos a atribuir a queda dos homicídios a essa nova configuração do crime em São Paulo.
A situação começou a mudar depois de dois acontecimentos marcantes. Em 1997, a PM esteve à beira de virar de ponta-cabeça depois do episódio da Favela Naval, quando policiais de Diadema foram flagrados por um cinegrafista amador torturando moradores numa blitz. Uma pessoa morreu. As imagens percorreram o mundo e o governo do Estado reagiu enviando ao Congresso projeto de lei que desmilitarizava o perfil da corporação.
Nessa mesma época, Nova York apresentava ao mundo os resultados de um novo modelo de gestão de segurança pública que havia reduzido homicídios e crimes em um curto período de tempo. Mudava-se assim um importante paradigma.
Uma polícia ostensiva, que age de forma eficiente, capaz de estar no lugar onde os crimes acontecem, pode derrubar os assassinatos em poucos anos. Os assassinatos não eram problemas para a próxima geração.
"Foi um momento histórico. A crise provocada pela Favela Naval aumentou dentro da polícia a força daqueles que já vinham pensando em maneiras de usar a tecnologia no combate ao crime.
Esses projetos ganharam espaço político na corporação e provocaram uma pequena revolução nos métodos de gestão", avalia o coronel Arruda.
Na PM, entre as mudanças principais, fórmulas matemáticas substituíram critérios políticos para distribuir os efetivos policiais; softwares modernos de registros de crimes em tempo real tornaram mais eficiente a gestão de 90 mil homens e 15 mil viaturas. "Hoje, mais do que nunca, em vez do policiamento empírico, temos um policiamento científico", afirma o major Alfredo Deak Júnior, assessor de Tecnologia de Informação da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
No mesmo período, com base nas trocas de informações sobre boas práticas policiais no mundo, tanto delegados da Polícia Civil como oficiais da PM passaram a se responsabilizar pelos resultados e metas de criminalidade de um mesmo território, o que estimulou a parceria entre as polícias, que conversavam pouco no passado. A polícia ainda pôde contar com uma participação mais direta da população na denúncia de crimes.
Cansados da matança, moradores denunciam homicidas que assombravam bairros violentos, ajudando a colocar assassinos nas prisões. O Disque-Denúncia começou a funcionar em 2000 e ajudou a furar a lei do silêncio. Quatro anos depois, o serviço já registrava mais de 96 mil ligações sobre fatos relacionados a homicídios, que contribuíram na captura de 2.236 criminosos procurados pela polícia. Com a reformulação do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa, a Polícia Civil conseguiu aumentar em mais de oito vezes a prisão de homicidas entre 2001 e 2004. Os homicidas contumazes foram alvos prioritários.
O trabalho mais eficiente da polícia, que fez a população carcerária passar de 54 mil presos em 1994 para 144 mil em 2006, ajudou no fortalecimento do PCC.
"A grande capacidade atual de o PCC intermediar conflitos, desde briga de traficantes até desavenças familiares em algumas regiões, nos coloca hoje uma pergunta importante: até que ponto o Estado ainda é capaz de garantir o monopólio da violência e da gestão da ordem na sociedade?", questiona a socióloga Vera da Silva Telles, da Universidade de São Paulo. "Lidar com essa nova realidade é o grande desafio da sociedade contemporânea."
Em meio a tantas novidades, a diretora Jucileide, da Escola Oliveira Viana, talvez tenha sido a única pessoa que permaneceu a mesma. Vaidosa, continua caprichando na tintura do cabelo e no retoque das unhas - sempre em tons alegres. Casou, mas não teve filhos. Cuida de 9 cachorros e de 18 gatos. Perto de se aposentar, depois de décadas de sofrimento, acha que valeu a pena seguir firme em sua crença sobre o papel da educação. "Educar é acreditar na transformação. O professor precisa ter fé no ser humano. As pessoas não nascem ruins. Elas podem mudar", conclui.
Fonte: O Estado de São Paulo
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